domingo, 17 de abril de 2011

AS “PITAS (ou pitos?) DE S. LÁZARO” (PENUDE)

Lembram-se das "Pitas de S. Lázaro", aquele doce amarelo-dourado em forma de "pinto" e com um ovo de recheio que uma senhora de Lamego vinha vender para a parta da Igreja no domingo anterior ao "Domingo de Ramos"? Presumo que era chamado domingo de S. Lázaro porque é o domingo mais próximo do dia em que se celebra S. Lázaro (10 de Abril). Havia mesmo o ditado que então se repatia anualmente: "S. Lázaro, Ramos, na Páscoa estamos!". Hoje pergunto-me porquê essa iguaria, precisamente nesse e só nesse dia? Consta que é um doce típico do Bairro da Ponte (Lamego). Será que a senhora vinha a Penude escorar os excedentes que não vendera nas festa do santo padroeiro da Ponte? Mesmo que assim fosse, nunca mais pude esquecer as fantasias e desejos que esse doce doirado despertava nas minhas infantis entranahas. Há tempos, numa das minhas passagens pela cidade de Lamego, encontrei, com certa surpresa minha, o dito doce à venda. Afinal não estava extinto... Claro que logo comprei para recordar o sabor e reviver velhas sensações. Mas que desilusão!... o pitéu que na infância me fazia arregalar os olhos e crescer água na boca não tinha já o mesmo sabor. Nem “pinta” conservava das delícias da "pita" nem do pitéu da minha infância, a salvava-se o tal ovo com sabor previsível. E, mais uma vez, pude constatar que as delícias e os maiores gozos da vida não têm a ver com o que podemos comprar e ter, mas com o que muito desejamos porque não nos está à mão todos os dias. Tive, mais uma vez, a sensação de que a verdadeira felicidade tem mais a ver com a fome do que com a saciedade. Aquelas "pitas de S. Lázaro" eram, afinal, um símbolo do sonho que comanda a vida e do tesouro e do grande banquete que nos espera na vida eterna. Até lá, a nossa condição terrena é demandante; somos peregrinos e itinerantes num êxodo que nos levará à terra prometida, alimentados pelo maná ideal que é sempre mais gostoso que o real. Esse maná ou essas “pitas douradas” nos sustentam, mas não nos matam a fome, pois esperamos e ansiamos por comer dos frutos da terra da promessa. E mal de nós qundo fizermos da sesta dos saciados o nosso estado de vida: não há outro remédio senão caminhar, pois é melhor morrer a caminho que viver sob o império dos Faraós. Essas "pitas douradas" da nossa infância exprimem a saciedade sempre parcial, a felicidade  sempre incompleta que todos buscamos. Quanto mais perscrutamos os mistérios mais insondável se nos revela a vida e a morte, mais sede temos do bem, do verdadeiro, do belo, do infinito. Mas é esta fome e sede que nos move. Até que esse ovo simbólico dê à luz a plenitude da vida.
                                               Isidro Lamelas

“Ò ramos, ò ramos, na Páscoa estamos!”

Há palavras que cheiram que nem rosas acabadas de abrir no acordar da primavera.
Há frases que cheiram que nem jardins acabados de regar numa destas manhãs do sol português.

“O DOMINGO DE RAMOS” é dessas expressões que me fazem arrepiar de uma indescritível nostálgica embriaguez pois me transportam lá para trás, até aos tempos de criança em que palavras como “quarenta horas” ,“quarta feira de cinzas”, “quaresma”, “jejum”, “Semana Santa” tinham um peso dramático e fundo, sacrificial é certo, mas de uma simbologia renovática que nos fazia renascer de novo no “sábado aleluia” para a alegria pascal!

Mas, de todo o ritual sagrado e transformante do “tríodo pascal”, “O DOMINGO DE RAMOS”, simbolizava para mim o perfume de Deus! Os odores fecundantes saltam para o céu azul do Abril primaveril e libertador, aproximando os pólos opostos ao grito fecundo da procriação, e, assim, assegurando a imortalidade do universo inteiro e divino. E eis-me em criança, nesse dia dos odores celestiais do “DOMINGO DE RAMOS em Penude” em que eu e tantos outros meninos, não hebreus, mas de Penude, (como o Alcides o Leonel Claro, o Manel Pinto, o Avelino Maravilha, o João Carola, o Aníbal carola, O Gil, o Arcílio, os meus irmão Carlos, Isidro, a Fátima, e tantos outras crianças que o foram em Penude) logo na semana que antecedia “O DOMINGO DE RAMOS”, corríamos numa azáfama saltitando de lameiro em lameiro, à procura de ramos de alecrim, oliveira, loureiro, lírios amarelos (que nem abelhas saltitando de flor em flor de abelhas na azáfama da produção desse néctar do deuses). Com esse material inventávamos mil e uma formas de RAMOS para, triunfantemente, entrarmos orgulhosamente igreja dentro para a guarda de honra de um “cero Galileu” que uns dois mil anos antes, apesar de ter passado a vida a fazer o bem foi crucificado pelos seus logo após a sua recepção triunfante na sua cidade (qual ironia e contradição da humanidade!).
E que formas! E que tamanhos! E que combinações tinham estes RAMOS! Havia ramos em forma de coração e outros em forma de cruz bem demonstrativos dos artistas da terra! Outros, era o que se podia ou seja, mais pareciam aquelas vassouras de giesta piorna que se usavam nas malhadas para varrer os grões de trigo ou centeio caídos na eira (apesar desta ser previamente cimentada de bosta de “baca” para que nada se perdesse de pão!). Outros RAMOS eram tudo menos ramos, dada a descomunal altura e largura que nem os maiores castanheiros dos mil e um soutos de Penude (que a moléstia depenante do “progresso a todo o custo” já quase tudo levou).

Obviamente que não resisto a falar destas ultimas obras primas do orgulho das gentes de Penude, particularmente de Penude de Baixo! Estes ramos que nem árvores só tinha um problema para os seus artistas: entrar na porta principal da nossa Igreja Paroquial de Penude! Aqueles tamanhos descomunais da mais improvisada engenharia penudense, quando chegava o momento (quase sempre angustiante porque tudo era de improviso) da entrada triunfante no templo santo, fazia lembrar a vertiginosa entrada do andor de Nossa Senhora do Rosário na capela do Outeiro, em que a coroa da “virgem santa” roçava quase até aquelas magníficos sinos altaneiros que dominam todo aquele vale).
A lembrança que tenho é que aquela procissão de árvores ambulantes vindas de Penude de Baixo mais parecia a serra das Meadas a caminho da “santa missinha dominical, como manda a Santa Madre Igreja para todos os domingos e dias santos de guarda”!

A verdade é que mal entrava o cortejo festivo, com o Senhor Abade (Pe. Manuel Rodrigues Borges) paramentado de tons festivos mais os acólitos e demais figurantes, já a Igreja estava repleta de verde e mais verde e sagradamente perfumada a alecrim, louro, e muitas flores, transformando aquele espaço sagrado no mais genesíaco jardim do eden, donde não apetecia sair mais!
Toda esta beleza terrena com sabor a céu, era depois completada com o cheiro a incenso espalhado pelo fumo santo purificado no fogo ardente do turíbulo das brasas.

Mas os momentos mais altos e gloriosos aconteciam eram a leitura do Evangelho da paixão, segundo S. Mateus (uma dor de alma para nós, pequenada, ouvir naquela voz majestosa do Pe. Borges, o tanto de mal que fizeram Àquele jovem galileu que passou o mundo a fazer o bem) e sobretudo o momento da bênção dos RAMOS, em que do ensope e da caldeirinha eram despejadas pingas e mais pingas de água benta espalhadas, que escorriam voluptuosamente sobre aquela floresta santa de RAMOS e as nossas cabeças completamente em êxtase! Nesta azáfama sobrenatural da benzedura ramalhítica, por vezes aconteciam alguns atropelos do moveu, estendendo seus ramos ao chuvisco bento (pois quanto mais agua mais sagrado iam os ramos para endeusar as casas e Sta. Bárbara melhor valer em idus de tempestade medonha!).

No final lá ia a pequenada toda para suas casas com os seus ramos (agora santificados) e os ramos para as casas dos avós ou velhinhos que não podia já ir à Igreja, cabendo à pequenada fazer a boa obra, para que ninguém ficasse sem o “ramo Santo”.

E pronto, “ò ramos ó ramos, na Páscoa estamos”

Boas festas pascais para todos.
Filipe Lamelas

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A PÁSCOA DE QUE TODOS NECESSITAMOS

Sabemos que, durante longas décadas e até séculos, os cristãos celebravam apenas ou sobretudo a festa da Páscoa. Por ser considerado o acontecimento central e fundante da fé da Igreja, os cristãos comemoravam e reviviam os acontecimentos da paixão-morte e ressurreição de Jesus reconhecendo-se no mesmo destino do seu Mestre. Com o tempo, outras datas e festividades, como o natal, foram preenchendo o calendário cristão que paulatinamente foi substituindo o ciclo anual das festas e divindades pagãs. De qualquer modo, a Páscoa assumiu sempre um significado especial na vida dos cristãos de ontem e de hoje. Assim é também entre nós, mas muita coisa vai mudando, à medida e conforme a maior ou menor presença da influência da Igreja. É notório, por exemplo, que o Natal, como celebração e vivência popular generalizada, se tem sobreposto à vivência da Páscoa. Tal inversão tem, contudo, mais a ver com um menor vinculo com a fé e as Igrejas do que com uma consciência do verdadeiro significado do Natal cristão. Quanto à festa da Páscoa, esta não está tão sujeita a tal desgaste. Se o natal é a festa da família, a Pascoa é a festa da Igreja e continua, por isso, mais sob o controlo pastoral e normativo da Igreja. Mas já o foi mais. Se, para um cristão comprometido, não há domingo sem missa, nem Páscoa sem “desobriga” (confissão) e missa de Domingo Pascal, em muitos casos e sobretudo nas cidades, têm-se vindo a perder alguns das vivências litúrgicas e populares da Páscoa. Se nas aldeias e cidades do Minho ainda se celebra a Páscoa na rua com foguetes, flores e folares a acolher o Compasso (Cristo Ressuscitado que anda de casa em casa a abençoar os lares), noutras partes do país o entusiasmo popular não vai muito além das amêndoas e do pão de ló. Se os pregadores e lideres eclesiásticos continuam a recordar que a Páscoa é “passagem” para uma vida nova, e colocam o acento na morte-ressurreição celebrada na Vigília de Sábado para Domingo, facto é que muitas Igrejas se enchem mais nas sexta Feira santa e não trocam pelo “lume novo” do círio pascal o teatro das via-sacras dolorosas e procissões dos Passos que se vão renovando, cada vez mais, “para turista ver”. Sempre existiu e continuará a perdurar esta discrepância entre a teologia ou orientação dos pastores e a vivência popular dos “mistérios”. Os teólogos e as Igrejas foram sempre mais influenciados pelas crenças e práticas populares que o contrário. A teologia afirma: “o Natal sucedeu num dia de de uma vez por todas”; o nosso povo diz: “Natal é todos os dias”. A Igreja ensina: “A Páscoa é quando Deus quiser e é, por isso, todos os dias”; o povo diz: “O natal é quando o homem quiser” e “a Páscoa, como a desobriga, é uma vez ao ano”. O Natal começa nas nossas cidades cada vez mais cedo, a Igreja ensina que a Páscoa se prolonga por 50 dias e por todos os domingos do ano. Mas para a maioria ela acaba cada vez mais cedo, ou nem chega a começar...  Esta discrepância verifica-se também ao nível das tradições e modos de celebrar, muitas vezes à margem da orientação da hierarquia. Há regiões do Alentejo em que continua a celebrar-se a Páscoa sem padre nem bispo: À maneira dos antigos judeus o povo acampa à beira rio, comendo o cordeiro, à espera da “Passagem”. Em muitas aldeias do nosso país mantêm-se formas de dramatização da Paixão de Jesus, onde o corpo social se revê e renova: aí Judas continua a ser mesmo o traidor, merecedor de estoirar como um foguete por ter vendido Cristo por 30 moedas; Aí Pilatos continua a lavar as mãos como tantos de nós; Aí Barrabás continua a ser posto em liberdade para que o “justo pague pelo pecador”; aí as “Senhora das Dores” e as mulheres continuam a chorar lágrimas a que se associam tantas mulheres e mães do mundo; aí Cireneu e Verónica continuam a representar o lado bom da humanidade solidária com o seu próximo. Por tudo isto e muito mais, o drama da Páscoa continua a tocar o coração do nosso povo: É que todos nos revemos nesta urgência de “passagem” da morte à vida; da crise à esperança; da dor sem sentido ao amor com seus espinhos. Facto é que, na paixão de Cristo os homens de hoje continuam a ver a sua paixão e as paixões do mundo sofredor sedento de redenção. Nela todos continuarmos a aprender a grande lição da Cruz, assim expressa por S. Francisco de Assis: “é dando que se recebe, é perdoando que se é perdoado e é morrendo que se vive para a Vida Plena”
(Texto publicado no jornal I).
                                                                                        Isidro Lamelas
Com votos de Santa e Feliz Páscoa para todos.

Um certo dia um homem esteve aqui
Tinha o olhar mais belo que já existiu
Tinha no cantar uma oração.
E no falar a mais linda canção que já se ouviu.
Sua voz falava só de amor
Todo gesto seu era de amor
E paz, Ele trazia no coração.
Ele pelos campos caminhou
Subiu as montanhas e falou do amor maior.
Fez a luz brilhar na escuridão
O sol nascer em cada coração que compreendeu
Que além da vida que se tem
Existe uma outra vida além e assim...
O renascer, morrer não é o fim.
Tudo que aqui Ele deixou
Não passou e vai sempre existir
Flores nos lugares que pisou
E o caminho certo pra seguir
Eu sei que Ele um dia vai voltar
E nos mesmos campos procurar o que plantou.
E colher o que de bom nasceu
Chorar pela semente que morreu sem florescer.
Mas ainda há tempo de plantar
Fazer dentro de si a flor do bem crescer
Pra Lhe entregar
Quando Ele aqui chegar
Tudo que aqui Ele deixou
Não passou e vai sempre existir
Flores nos lugares que pisou
E o caminho certo pra seguir
Tudo que aqui Ele deixou
Não passou e vai sempre existir
Flores nos lugares que pisou
E o caminho certo pra seguir

                                                   Isidro Lamelas

domingo, 3 de abril de 2011

O PRESUNTO DE LAMEGO, AFINAL É DE PENUDE.


A grande fonte de sobrevivência das gentes de Penude foi sempre a agricultura e a criação de gado. Os pastores de gado lanígero eram numerosos, ao ponto de, em 1649, o Visitador episcopal ter instituído para eles uma missa dominical antes do nascer do sol. Quanto aos bois/vacas vermelhas, serviam sobretudo para os trabalhos do campo. Em 1843 havia em Penude 64 carros de vacas (apenas três puxados a bois). Mas o grande amigo dos penudenses era mesmo o porco. Efectivamente, Penude foi sempre terra de criação de porcos e desenvolveu, ao longo dos séculos e gerações, uma verdadeira arte no aproveitamento e tratamento de cada uma das peças da carne suína e mormente do presunto. Podemos mesmo orgulhar-nos de ser os criadores do famoso presunto de Lamego, essa marca de qualidade tão apreciada e conhecido em todo o país. De facto, era de Penude (e Magueija) que essa famosa iguaria era fornecida para os vendedores de Lamego que, por sua vez, se encarregaram de a divulgar pelos quatro cantos do país.

Em Penude, casa que não cevasse porco e não tivesse matança era sinal de pobreza ou mau governo doméstico. A salgadeira era a grande reserva de condoito para todo o ano. Aos que não matavam, era costume os vizinhos levarem pelo menos uma amostra da sarrabulhada. Uma parte do focinho e das orelhas do bicho era ritualmente consumida na terça feira de carnaval. Os homens levantavam-se à hora da ceia para descarregarem as escopetas através da janela, ou à porta dum vizinho, para expulsarem o entrudo comilão. O resto da cabeçola ficava para o dia da malhada ou para as bessadas. Mas, como é sabido, o porco tem tantos paladares quantas as partes do seu corpo. Logo no dia da matança saboreavam-se, além do sarrabulho, algumas partes das vísceras. Outras partes mais saborosas eram guardadas na salgadeira para o dia das malhadas. Os lombos eram preparados em vinha de alhos para fazer salpicões. As
"bandas" (barriga) eram conservadas na salgadeira para ir temperando as sopas, bolas e demais pratos; As coxas em breve se chamarão presuntos (pés de trás) e pás (pés da frente). A espinha e as costelas eram guardadas na salgadeira para dar sabor à sopa ou para os pratos em dia de festa ou bessada; das costelas saíam as melhores fêveras para as gostosas assaduras – mas
poucas, pois poupar era preciso para as moiras, e chouriças de carne. A demais carne, depois de separada dos ossos, era cortada em miúdos para ficar em vinha de alho e fazer fumeiro. Entre os salpicões bem enfileirados no caniço, tinha lugar de destaque o salpicão da língua, feito precisamente com a língua do animal. Por norma, este que era o rei dos salpicões devia ser comido no Carnaval. Matança do porco «No dia de Sto. André, faz o porco ‘cué-cué». E, de facto, Santo André não parecia muito amigo deste animal tão imprescindível na salgadeira e economia das gentes penudenses. Mas também S. Martinho ia pelo mesmo caminho quando dava razão ao dito: «no dia de S. Martinho mata-se o porco e prova-se o vinho». Assim sucedia, de facto, num tempo em que nem os santos pareciam preocupados com os direitos dos animais.
Quando o vinho novo já fervilhava no tonel, os castanheiros se despiam de suas últimas folhas e a faina agrícola amainava, era tempo de pensar em lavar a salgadeira que servirá de frigorífico e de talho para o ano inteiro. No dia marcado e combinado com os familiares ou algum amigo mais próximo, bem cedinho começava o dia, com o afiar das facas e preparação do banco e alguidares para a matança. De véspera, o animal ficava em jejum, para evitar que as entranhas se perfurassem na hora de "abrir". Às mulheres cabiam as tarefas de manter o lume aceso para aquecer a água para lavar o bicho e as tripas, assim como o pote para coser o sarrabulho.


Uma vez tudo preparado, era hora de consumar a parte cruenta do ritual. O animal bem cevado era trazido à força e colocado no banco apropriado, onde era amarrado e segurado por braços habituados a esforços suplementares. Os lugares assumidos por este serviço, estritamente reservado aos homens, não era arbitrário. Estatuto especial tinha, desde logo, o matador que punha todo o brio em fazer um "serviço bem feito". Mas também para cada outra tarefa havia o homem certo. No meio de rugidos aflitivos do animal e do alarido de homens e mulheres, depressa o animal se esvaia em sangue que jorrava para diferentes alguidares e era aproveitado até à última gota, conforme o destino a dar ao mesmo: ou para o sarrabulho ou para as chouriças de sangue de entre as quais as "moiras" eram as mais apetecidas. Mas havia sempre alguém que não escondia os sentimentos de pena pelo animal, ao que se atribuía a frequente demora com que a vítima dava o último esticão. Seguia-se a tarefa de chamuscar o porco, com lumieiras feitas de palha de centeio, previamente preparadas e protegidas da chuva para arderem e queimarem o pelo do animal como deve a ser. Depois do sacrifício, tinha então lugar uma espécie de holocausto em que o fogo assumia o seu habitual papel. Em cada uma destas fazes, os cheiros vão-se sucedendo e alterando do mesmo modo que o aspecto do animal imolado. Depois do fogo que tinha por função imolar todo o tipo de impurezas, o porco estava prestes a "mudar de nome", graças à intervenção de um novo elemento do ritual: a água com que se lava toda a sujidade natural de quem sempre foi "porco". Pouco a pouco, a vítima ia ganhando um aspecto mais conforme ao seu destino. Uma vez terminado este primeiro e último banho do animal, era o momento de uma merecida pausa para, sobre o próprio corpo do animal, se preparar a mesa e saborear as primícias deste sacrifício: o sarrabulho, isto é, o sangue da vítima simplesmente cozido em água, com algum dente de alho. De copo na mão bem perfumada com os odores do animal, os autores da imolação vão dando palpites sobre o peso do porco, enquanto um destes, muitas vezes movido com segundos intuitos de brincadeira, preparava o benchilho de palha para limpar o reto ao animal. Terminado o breve banquete, estavam retomadas as energias para carregar o bicho para o dependurar no chambaril já colocado numa das traves da loja. O matador retomava agora a faca adequada para abrir o porco. Esta era uma operação que requeria particular destreza e se transformava, muitas vezes, numa repetida lição de anatomia prática, conforme o refrão popular: "Se queres conhecer o teu corpo, abre ou desmancha o teu porco". O momento era de grande ansiedade. À medida que se abriam as entranhas do porco, eram muitas as expectativas: O matador rezava para que as tripas não estivessem muito cheias e alguma delas viesse a rebentar; os donos do animal esperavam que tivesse muitos untos, num tempo em que a gordura era sinónimo tanto de formosura como de fartura, as crianças esperavam impacientemente que fosse retirada a bexiga, para dela fazerem uma bola de futebol, ainda que o efeito fosse mais de rugby e até os cachorros esperavam, quase nunca em vão, participar do Caso não se quisesse fazer as vontades à canalha, a bexiga, depois de cheia com gorduras, era posta a secar junto ao fumo da lareira como troféu ou prova de que se tinha feito a matança. As tripas eram então separadas das demais vísceras e cobertas com o redanho, que, depois de separado das tripas, se derretia em manteiga. As mulheres deitavam então mãos à tarefa menos grata e que só a elas competia: lavar as tripas que irão ser usadas para encher chouriças e salpicões, depois de lavadas e refriadas durante uns dias. » Desmancha Dois dias depois, durante os quais as carnes do bicho ficavam duras e secas, tinha lugar a desmancha: o porco era criteriosamente partido e separado peça a peça. E vai ser outro dia de fartura. As brasas na lareira estão já bem vivas para receber as "assadura": pequenas fêveras assadas directamente na brasa que tinham sempre um sabor único. No mesmo lume eram feitos os torresmos, num ponte de ferro donde se espalhava um aroma de fazer crescer água na boca que só um copo de vinho novo conseguia amainar. Dos torresmos era separada a manteiga com que, ao longo do ano, se fazia o "caldo de manteiga" e se temperavam as demais sopas e pratos. No dia da matança, era costume levar aos vizinhos que não matavam, um prato de arroz com sarrabulho e torresmos. Sucedia, muito frequentemente, que pouco sobrava para a salgadeira, já que eram muitos os que não tinham meios para cevar um bacorinho. Por aqui, e por todo o demais ritual ligado ao porco, se percebe a importância não só económica, mas também cultural e social deste animal na vida das nossas gentes passadas.

Autor:Isidro Pereira Lamelas.

* Nota: O texto apresentado é de grande valor histórico e relata o quotidiano das gentes de Penude e há várias décadas.

Merece um destaque especial no blogue, por isso, aqui fica republicado na íntegra.

Um excelente trabalho do nosso querido amigo Isidro Lamelas.

* Manuel Dória Vilar

UM NOVO APAGÃO ? NÃO.


ESCLARECIMENTO E SUGESTÃO

» Os textos publicados há poucos dias neste blogue desapareceram.

» Esclarecemos que não foi nenhum apagão.

Os autores desses mesmos textos consideraram retirá-los porque já constam na página web oficial de Penude.


» Por mim deveriam republicá-los aqui, porque muitos dos nossos leitores bloguistas poderão preferir aceder directamente ao blogue e não ir à página.

» Fica a sugestão.